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sábado, março 11, 2006

O Norte é mais Português que Portugal

Primeiro, as verdades. O Norte é mais Português que Portugal.
As minhotas são as raparigas mais bonitas do País. O Minho é a nossa provínciamais estragada e continua a ser a mais bela. As festas da Nossa Senhora da Agonia são as maiores e mais impressionantes que já se viram.
Viana do Castelo é uma cidade clara. Não esconde nada. Não há uma Vianasecreta. Não há outra Viana do lado de lá. Em Viana do Castelo está tudo à vista. A luz mostra tudo o que há para ver. É uma cidade verde-branca.Verde-rio e verde-mar, mas branca. Em Agosto até o verde mais escuro, que se vênas árvores antigas do Monte de Santa Luzia, parece tornar-se branco ao olhar. Até o granito das casas. Mais verdades. No Norte a comida é melhor. O vinho émelhor. O serviço é melhor. Os preços são mais baixos. Não é difícil entrar aocalhas numa taberna, comer muito bem e pagar uma ninharia. Estas são as verdades do Norte de Portugal. Mas há uma verdade maior. É que sóo Norte existe. O Sul não existe. As partes mais bonitas de Portugal, oAlentejo, os Açores, a Madeira, Lisboa, et caetera, existem sozinhas. O Sul é solto. Não se junta. Não se diz que se é do Sul como se diz que se é do Norte.No Norte dizem-se e orgulham-se de se dizer nortenhos. Quem é que se identificacomo sulista? No Norte, as pessoas falam mais no Norte do que todos os portugueses juntos falam de Portugal inteiro.
Os nortenhos não falam do Norte como se o Norte fosse um segundo país.Não haja enganos. Não falam do Norte para separá-lo de Portugal. Falam do Norteapenas para separá-lo do resto de Portugal. Para um nortenho, há o Norte e há o Resto. É a soma de um e de outro que constitui Portugal. Mas o Norte é ondePortugal começa. Depois do Norte, Portugal limita-se a continuar, a correr porali abaixo. Deus nos livre, mas se se perdesse o resto do país e só ficasse o Norte, Portugal continuaria a existir. Como país inteiro. Pátria mesmo, pormuito pequenina. No Norte. Em contrapartida, sem o Norte, Portugal seria umamera região da Europa. Mais ou menos peninsular, ou insular. É esta a verdade. Lisboa é bonita e estranha mas é apenas uma cidade. O Alentejo é especial masibérico, a Madeira é encantadora mas inglesa e os Açores são um caso à parte.
Em qualquer caso, os lisboetas não falam nem no Centro nem no Sul - falam em Lisboa. Os alentejanos nem sequer falam do Algarve - falam do Alentejo.As ilhas falam em si mesmas e naquela entidade incompreensível a que chamam,qual hipermercado de mil misturadas, Continente.
No Norte, Portugal tira de si a sua ideia e ganha corpo. Está muito estragado, mas é um estragado português, semi-arrependido, como quem não quer a coisa.O Norte cheira a dinheiro e a alecrim. O asseio não é asséptico - cheira acunhas, a conhecimentos e a arranjinho. Tem esse defeito e essa verdade. Em contrapartida, a conservação fantástica de (algum) Alentejo é impecável, porqueos alentejanos são mais frios e conservadores (menos portugueses) nessas coisas.
O Norte é feminino. O Minho é uma menina. Tem a doçura agreste, a timidez insolente da mulher portuguesa. Como um brinco doirado que luz numa orelhapequenina, o Norte dá nas vistas sem se dar por isso.
As raparigas do Norte têm belezas perigosas, olhos verdes-impossíveis, daqueles em que os versos, desde o dia em que nascem, se põem a escrever-se sozinhos.Têm o ar de quem pertence a si própria. Andam de mãos nas ancas.Olham de frente. Pensam em tudo e dizem tudo o que pensam. Confiam, mas não dão confiança. Olho para as raparigas do meu país e acho-as bonitas e honradas,graciosas sem estarem para brincadeiras, bonitas sem serem belas, erguidas pelonariz, seguras pelo queixo, aprumadas, mas sem vaidade. Acho-as verdadeiras. Acredito nelas. Gosto da vergonha delas, da maneira comocoram quando se lhes fala e da maneira como podem puxar de um estalo ou de umapanela, quando se lhes falta ao respeito.
Gosto das pequeninas, com o cabelo puxado atrás das orelhas, e das velhas, de carrapito perfeito, que têm os olhos endurecidos de quem passou a vida a cuidardos outros. Gosto dos brincos, dos sapatos, das saias. Gosto das burguesas,vestidas à maneira, de braço enlaçado nos homens. Fazem-me todas medo, na maneira calada como conduzem as cerimónias e os maridos, mas gosto delas. Sãomulheres que possuem; são mulheres que pertencem.
As mulheres do Norte deveriam mandar neste país. Têm o ar de que sabem o queestão a fazer. Em Viana, durante as festas, são as senhoras em toda a parte.Numa procissão, numa barraca de feira, numa taberna, são elas que decidemsilenciosamente. Trabalham três vezes mais que os homens e não lhes dão importância especial. Só descomposturas, e mimos, e carinhos. O Norte é a nossaverdade. Ao princípio irritava-me que todos os nortenhos tivessem tanto orgulhono Norte, porque me parecia que o orgulho era aleatório. Gostavam do Norte só porque eram do Norte. Assim também eu. Ansiava porencontrar um nortenho que preferisse Coimbra ou o Algarve, da maneira que eu,lisboeta, prefiro o Norte. Afinal, Portugal é um caso muito sério e compete a cada português escolher, de cabeça fria e coração quente, os seus pedaços epormenores.
Depois percebi. Os nortenhos, antes de nascer, já escolheram. Já nascemescolhidos. Não escolhem a terra onde nascem, seja Ponte de Lima ou Amarante, e apesar de as defenderem acerrimamente, põem acima dessas terras a terra maiorque é o "O Norte". Defendem o "Norte" em Portugal como osPortugueses haviam de defender Portugal no mundo.
Este sacrifício colectivo, em que cada um adia a sua pertença particular - onome da sua terrinha - para poder pertencer a uma terra maior, é comovente. NoPorto, dizem que as pessoas de Viana são melhores do que as do Porto. Em Viana, dizem que as festas de Viana não são tão autênticas como as de Pontede Lima.
Em Ponte de Lima dizem que a vila de Amarante ainda é mais bonita. O Norte nãotem nome próprio. Se o tem não o diz. Quem sabe se é mais Minho ou Trás-os- Montes, se é litoral ou interior, português ou galego? Parece vago.Mas não é. Basta olhar para aquelas caras e para aquelas casas, para asárvores, para os muros, ouvir aquelas vozes, sentir aquelas mãos em cima de nós, com a terra a tremer de tanto tambor e o céu em fogo, para adivinhar.
O nome do Norte é Portugal. Portugal, como nome de terra, como nome de nóstodos, é um nome do Norte. Não é só o nome do Porto. É a maneira que têm de dizer "Portugal" e "Portugueses". No Norte dizem-no a toda a hora, com a maiordas naturalidades. Sem complexos e sem patrioteirismos. Como se fosse só umnome. Como "Norte". Como se fosse assim que chamassem uns pelos outros. Porque é que não é assim que nos chamamos todos?
by Miguel Esteves Cardoso

1 Comments:

Blogger x-man ; Ginga said...

concordo plenamente, sem qualquer objecção e sem qualquer duvida.

3/12/2006 7:49 da tarde  

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